Quem ama mata!

Dia 24 de dezembro, véspera de Natal um condomínio no setor Bueno na cidade de Goiânia-GO, acordou com os berros de uma moradora. Ela pedia ajuda desesperada:-Socorro ele vai me matar! Me ajudem! Os moradores do condomínio em frente, que podiam ver a cena de forma privilegiada, de dentro do apartamento, logo reagem: Covarde, vamos chamar a polícia. Podia-se ver igualmente que haviam 2 meninas com menos de 5 anos, que choravam e se abraçavam à mãe, que recebia os golpes do marido furioso. Ele desferia murros contra sua esposa e igualmente berrava com as crianças para pararem de chorar. O horror durou pouco mais de 30 minutos. Aos poucos as vozes das testemunhas iam ficando mais poderosas e o agressor cessa sua agressão. A polícia chega. Levaram o homem. A mulher fica só com as crianças.

Uma das testemunhas da cena, no andar abaixo, igualmente não parava de chorar. Ajudava como podia a vizinha que sofria as agressões. Gritava pedindo a ação da polícia. Ela gritava e lembrava de quando foi ela a vítima. No seu caso a surra foi tamanha que hoje ela não enxerga de um olho. É como se ela repetisse a cena de sua vida ao ouvir o desespero da vizinha.

São juízas, professoras, domésticas, mães de família. Qualquer uma pode ser vítima da violência contra a mulher. É uma violência específica. É selvagem, mas igualmente democrático. Qualquer idade, qualquer profissão, qualquer nível de escolaridade ou qualquer outro critério.

Por que se mata tantas mulheres inclusive no Brasil?

Vou tentar neste artigo levantar algumas questões. Em primeiro lugar, Freud, no seu artigo o Mal-estar na civilização (1929)[1] assinala que o homem deseja a felicidade governado pelo princípio do prazer mas esta aspiração fracassa pois, “a inclinação agressiva é uma disposição pulsional, autônoma, originária do ser humano” (Freud, 1929, p. 117). A agressão, principal produto da pulsão de morte rompe com a ilusão de um mundo orientado pela harmonia entre todos e a cultura. Frente a esta realidade humana, a psicanálise nos ensina que o hedonismo contemporâneo vai além do princípio do prazer e está governado pela pulsão de morte. O que rege o homem contemporâneo é o imperativo de gozo. No mundo denominado de hipermoderno (Lipovetsky, 2004)[2] o que rege é o consumo, e o apagamento da subjetividade pois consumir é igualmente “sumir” como sujeito. Sendo assim, se uma mulher coloca-se como obstáculo a obtenção de prazer do homem, ela pode e deve ser abatida. O imperativo de gozo não é mediado pela palavra e assim o ato se torna a resposta pulsional frente a frustração. Não é por acaso a eleição de Bolsonaro. Grande parte dos brasileiros elegeram o apagamento da palavra e no lugar querem a resposta imediata do ato da bala. Em vários dos casos relatados pelos pacientes o que fica claro é que o corpo da mulher é percebido igualmente como um objeto de consumo e quando não responde como se espera, deve ser “ajustado” ou “aniquilado”.

 

Em segundo lugar, não é somente a violência contra a mulher que deve ser investigada. Existe no mundo de hoje o mais profundo ódio contra o que é diferente, o que inclui a categoria mulher, mas não somente. Deve-se observar igualmente que para a psicanálise de orientação lacaniana não são sinônimos mulher e feminino. O masculino e o feminino no ensino de Lacan, a partir dos anos 70 com a lógica matemática, são diferentes ordenamentos de gozo. Segundo Alvarenga (2015)[3] o que chamamos de ordem masculina é uma ordem vertical, patriarcal, na qual o poder e o controle estão concentrados na figura de exceção, como o pai da horda primitiva no mito freudiano de Totem e tabu (2013)[4]. No que se refere a ordem feminina, esta surge quando já não há a instância reguladora do pai e nem dos ideais e por isso é uma ordem horizontal, na qual não há exceção. Costuma manifestar-se como uma ordem de ferro, com normas e nominações segregativas, segundo vários modos de gozo. Um exemplo é o grupo Femen, composto por mulheres feministas que protestam nuas e convocam a ordem masculina para contê-las e eventualmente prendê-las. O ato violento pode ser definido a partir da recusa do diferente, do heterogêneo a si mesmo. Uma tentativa de matar o feminino não reconhecido em si mesmo. Podemos assim ter um dado sobre a violência específica de nossa época que ataca o que não pode ser universal. Ataca assim o hétero, a diferença, e por isso pode se manifestar também na violência contra os homossexuais, o Trans, etc.

Para a psicanálise não existe uma resposta única em relação a este fenômeno. A proposta da psicanálise é uma investigação do singular em cada um dos sujeitos. Esta leva em consideração as significações inconscientes da agressão e da submissão e tem por princípio aceitar a diferença sexual e escutar o feminino que existe em cada sujeito, homem ou mulher. Segundo Alvarenga (2015) a psicanálise por considerar que há homens femininos e mulheres masculinas ajuda a lutar contra a segregação do hétero que há em cada um, que poderia ser também sua loucura.

* Anna Rogéria Nascimento de Oliveira é Psicanalista. Coordenadora do Naepp- Núcleo de Atendimento, Estudo e Pesquisa em Psicanálise de Goiânia. Mestre em psicologia clínica pela Université Laval ( Quebec) Canadá . Doutoranda em Psicologia Clínica pela Université du Quebec a Trois-Rivières (Quebec) Canadá com aproveitamento de crédito pela UCES de Buenos Aires. Docente UNIP Universidade Paulista. Docente em várias pôs-Graduações em Teoria e Técnica Psicanalítica ( Freud e Lacan). Coordenadora da Especialização em Psicanálise pela Incursos -Email: annavertigo001@gmail.com 



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