Um ano novo bem velho

Sempre que posso, evito discordar dos poetas. Tendo a ver razão em tudo o que dizem. E quando o poeta é Carlos Drummond, fica mais difícil qualquer tipo de oposição. Todavia, na entrada deste novo ano, discordo desse nosso poeta maior.
Meu ponto de contraposição a Drummond reside particularmente nos versos finais do poema “Receita de Ano Novo”, que também serve de título de um de seus livros. Ali, seu eu-poético nos diz que “Para ganhar um Ano Novo// que mereça este nome,// você, meu caro, tem de merecê-lo,// tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,// mas tente, experimente, consciente.// É dentro de você que o Ano Novo// cochila e espera desde sempre.”
Antes de expor os motivos pelos quais me contraponho a esses versos, afirmo reconhecer que mudanças interiores – portanto, nascidas nos meandros de nossas subjetividades – devam ocorrer sempre. Como humanos, precisamos estar sempre dispostos a mudanças, principalmente quando elas significam superação de algum estágio existencial.
Contudo, paradoxalmente, é pela mesma condição acima registrada – a de ser humano – que me oponho aos versos em pauta. Motivo: somos seres sociais. Diferentemente de outros animais, não damos conta de viver solitários. Até os ermitões, antes de chegarem a essa condição opcional, precisaram de muitas pessoas em suas vidas; precisaram de um contexto sócio familiar. Não fosse isso, a morte prematura inviabilizaria seus hábitos de eremita.
Como seres sociais que somos, sartreanamente falando, experimentamos o inferno na terra e na Terra. O outro (qualquer ser humano que não seja o “eu”) existe, inclusive e principalmente no plano político. Assim, agimos e recebemos ações sociais constantemente. Logo, aceitar que o “ano novo” – como possibilidade de renovação – está no bom propósito cristão do “eu” é insuficiente para sustentar um “ano novo” realmente novo. Até pode estar, mas não apenas.
Vamos a exemplos do momento. E vamos com perguntas.
Qual é a força que um solitário “eu” tem para ver os hospitais de nosso país funcionando com dignidade em todos os lugares?
Que poder tem o “eu” para não mais morar em condições sub-humanas nas periferias de tantas cidades? Bastaria dizer “vou mudar”, e pronto?
Como o “eu” – tipo ermitão – poderia ter impedido, na calada da noite, o Governo Federal de editar Medida Provisória alterando substancialmente o Ensino Médio brasileiro?
Que condições tem um “eu” – por si – de qualificar nosso caótico ensino?
De que forma o “eu” poderia ter evitado alterações maléficas contra todos os trabalhadores brasileiros no sistema previdenciário, influenciando diretamente nas aposentadorias?
Como um solitário “eu” qualificaria o transporte público brasileiro, principalmente nas grandes cidades?
De que maneira o “eu” poderia ter impedido vários governos estaduais de fatiarem salários de funcionários públicos? Como esse mesmo “eu” poderia garantir seus 13º salários, suas férias?
Que poder teve cada um dos vários “eus” presidiários de Manaus para impedir que fosse decapitado, mutilado?
Apenas por si, que força tem um “eu” – que vive cercado de drogas por todos os lados – de não promover e/ou sofrer ações de violência que o crime organizado promove?
Definitivamente, mesmo sem negar a importância de mudanças pessoais constantes, o fato é que um “eu” sozinho é como uma andorinha que, só, não faz verão. Por isso, desejo a cada “eu” a capacidade de se juntar ao “nós”. E todos, com muita garra, irmos para o enfrentamento deste ano que acaba de estourar no calendário civil.


* ROBERTO BOAVENTURA DA SILVA SÁ - dr. em Jornalismo/USP; prof. de Literatura/UFMT  



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