Do Sangue às Leis: As Mil Faces do Campo d’Ourique, o Coração da América do Sul

No centro exato da América do Sul, onde as coordenadas geográficas convergem para um único ponto em Cuiabá, repousa um solo que guarda camadas profundas da história mato-grossense. O antigo Campo d’Ourique, hoje conhecido por abrigar a Câmara Municipal e o obelisco da Praça Pascoal Moreira Cabral, é muito mais que um marco geodésico: é um testemunho mudo das transformações da sociedade cuiabana, do período colonial à modernidade democrática.

O Centro do Continente
A fama internacional do local consolidou-se em 1909, quando o Marechal Cândido Rondon determinou que aquele pedaço de chão era o Centro Geodésico da América do Sul. O monumento de mármore de 20 metros de altura, que hoje atrai turistas, é um símbolo de orgulho tão forte que estampa a bandeira da capital e o escudo do Cuiabá Esporte Clube. No entanto, antes de ser o orgulho geográfico do continente, o Campo d’Ourique foi palco de realidades muito mais cruas.

Um Passado de Sombras e Castigos
Nem sempre o silêncio institucional da Câmara Municipal dominou a área. Nos períodos colonial e imperial, o Campo d’Ourique exercia funções de controle social e repressão. Registros históricos revelam que o local era utilizado para o castigo público de pessoas escravizadas e execuções judiciais. A ampla esplanada servia para que o Estado e os senhores de terra demonstrassem seu poder através do medo, tornando o espaço um símbolo de dor e desigualdade.

O Espetáculo das Touradas Cuiabanas
Com o passar das décadas, a atmosfera do campo mudou. O local de suplício deu lugar ao entretenimento das massas. Antes da urbanização densa, o Campo d’Ourique transformava-se em uma arena para as touradas cuiabanas.
Inspiradas nas tradições ibéricas, mas adaptadas ao calor e ao jeitinho local, essas festas eram o principal evento social da cidade. Diferente do rigor europeu, as touradas em Cuiabá eram descritas por historiadores como grandes encontros populares, repletos de música, comidas típicas e a presença de famílias de todas as classes sociais. Era ali que a cidade pulsava e se encontrava para celebrar, longe da rigidez das igrejas.

De Arena a Sede do Legislativo
A transição do Campo d’Ourique para o centro do debate político reflete a própria evolução de Cuiabá. Deixando para trás o sangue dos castigos e a poeira das touradas, o espaço foi urbanizado para dar lugar ao poder civil.
Hoje, ao caminhar pela Praça Pascoal Moreira Cabral, o visitante pisa em um terreno que já foi arena, patíbulo e espetáculo. Atualmente, o desafio do local é outro: em vez de cavalhadas ou execuções, o chão do Ourique sustenta as discussões que moldam o futuro da cidade na Câmara Municipal de Cuiabá.
Para quem deseja conhecer a capital mato-grossense, visitar o Campo d’Ourique não é apenas tirar uma foto no centro do continente; é compreender como uma cidade consegue ressignificar seus espaços, transformando um passado controverso em um presente de cidadania.